Uma ação educativa? ou o modo ONG de encarar a vida.

“Não-governamental e além do mais sem fins lucrativos? Tão longe, portanto, do dinheiro quanto do poder?”

Paulo Arantes in Zero a Esquerda, p. 167.

 

Estas dúvidas foram levantadas há quase uma década atrás em um artigo curiosa e originalmente publicado nos Cadernos Abong, com o título “Esquerda e Direita no espelho das ONGs”. Dez  anos se passaram, e podemos dizer que esta questão ainda não se calou. Nos seminários Labirintos e Trincheiras, produzido por esta Zagaia junto ao grupo Folias, lembramos a discussão sobre o tema, levantada por Fábio Resende, da Brava Cia., sobre como o trabalho crítico dos coletivos de teatro ficam limitados perante a participação das ONGs. Afinal, como dizer para a comunidade que a mesma instituição que assopra é a que morde? Como potencializar a linguagem que circula nas quebradas, quando tudo deve estar reduzido aos processos pedagógicos da arte-educação que leva a cultura do centro para as bordas da periferia, ou que ensina a fazer arte a partir dos materiais recicláveis que o consumo de mercadorias nos deixa de herança? Na periferia, não restariam outros materiais?

 

Neste texto,  Paulo Arantes questiona se ele não estaria sendo injusto, misturando o joio e o trigo, aproximando as ONGs da “transformação social” com aquelas que seriam “espúrias e apócrifas”. Mas, hoje, uma década depois, podemos dizer que o modo ONG de encarar a vida apenas nos leva às perversões travestidas de puritanismo. Prova maior disso é o cinismo do texto “Sarau do Binho: Crônica de um Poeta sem Bar”, escrito por Antonio Eleilson Leite, cidadão “proativo”, funcionário da ONG Ação Educativa, responsável sintomaticamente pela “Agenda Cultural da Periferia”.  Sem titubear na fala mansa de quem não quer se comprometer, o autor vai, aos poucos, apresentando sua visão de mundo: o que é o Sarau? Como deveria funcionar? Do que sofrem aquelas comunidades? Quais os limites do modelo do Binho? Como uma crise pode ser lucrativa? Nestas perguntas, algo subjaz: uma linguagem tão perto do poder e tão perto do dinheiro…

 

Tão perto do poder e tão fora do contexto

Pois é na fala mansa que o personagem se cria. Na posição mediana de um (inter)mediador cultural, Eleilson procura ajustar as pontas: atar relações com o Binho, retirando dele qualquer imagem de homem fora-da-lei (o que de fato não é), ao mesmo tempo que desvaloriza todo o caráter político de apoio de diversos coletivos de cultura, considerando-os “apressados” ao considerar o fechamento do bar como um ato de criminalização da cultura de periferia pela prefeitura de Kassab. Recurso básico: dividir para conquistar. Afinal, entre os que apoiam o Binho, estariam os apressados que, num ato “paranoico”, apenas repetiriam a ladainha de que o governo Kassab está contra eles. Imaginem?! Além do Binho, outros saraus entraram na dança, por motivos variados: coincidência???

Nada mais deslocado quando se teriam políticas públicas com as quais se pode contar sempre, não é mesmo? Basta um pouco de noção de gerenciamento que o dinheiro chega até eles!!! “Será que não é possível curtir uma poesia sem assumir postura de militante cultural?”, indaga. Em contrapartida, na outra ponta, estão aqueles que querem curtir a “poesia-arte”, defendida por Eleilson, imaculada nos espaços oficiais dos Saraus: aqueles que buscam na literatura um outro espaço, em que as agruras da miséria sejam compensadas pela beleza das palavras. Deste modo, nesta oposição calculada construída cirurgicamente entre dois Binhos – o da “arte”, “pós rancor” e “amigo” da gestão Kassab e o da política, “inimigo” da gestão Kassab – resta ao leitor optar por qual lado ficar.

 

No front anti-Kassab, não se reconheceriam as “ações educativas” do prefeito. Pelo contrário, confundiriam o subprefeito “técnico” em administrar populações e seus anseios, com o passado militar dos mesmos. Antigos militares, hoje reservistas, nada teriam em comum com o seu passado. Aposentou, mudou de estatuto… é isto que os “inimigos do Kassab” confundem. O fato das subprefeituras de São Paulo serem quase em sua totalidade comandadas por militares da reserva é apenas uma escolha técnica de uma gestão contraditória. No modo ONG de encarar a vida, tudo é questão de gerenciamento: missão dada é missão cumprida. As ordens de despejo são prova de que, entre a técnica de gerenciamento das populações e a estratégia de um militar, a diferença é a farda. Ainda neste modo ONG de encarar a vida, não importa o partido, o importante é gerir a miséria e evitar os conflitos.

Militarização? Que nada!

Daí a piscadela desta nova astúcia, pois na lógica da cafetinagem do mediador cultural todo o homem está à venda e todo poeta tem seu preço. Como se dissesse de lado e baixinho: “Binho, meu amigo, não liga pra esses aí, não. Existem outras formas: tem o VAI, tem diversos editais… Esses daí, estão alucinados com a violência com a qual estão acostumados. Você pode ser exemplo: vira um ponto de cultura! Eu te ajudo.” E ele ajudaria – não se nega. Afinal, de um lado, domina o linguajar da periferia (um dia veio de lá); de outro, domina como ninguém o idioma do dinheiro. Promove ações para captar fundos, auxilia os Saraus, fica bem na fita da comunidade, e assim o modo ONG de encarar a vida segue adiante. Mediador profundo das ações sociais e dos bons costumes cidadãos, Eleilson pretende ficar de bem com a comunidade que lhe interessa e a prefeitura. “De sorte que nem sempre é fácil perceber onde termina a utopia republicana e principia um empreendimento tocado à imagem e semelhança do mundo dos negócios”, como lembra Paulo Arantes.

 

Tão perto da grana, tão longe de você

Mas, óbvio, tudo tem um custo. Mesquinho é verdade, se pensarmos que o que está em jogo é a intermediação dos orçamentos municipal, estadual e federal para a cultura. E o mais importante é que, neste pinga-pinga, a ONG se mostra peça central. As migalhas orçamentárias são distribuídas entre editais, pelos quais concorrentes disputam o seu quinhão. Especializados em projetos, instituições mediadoras tratam de vincular o processo cultural aos termos do edital (quando eles mesmos não estão por trás da redação dos termos do edital pretensamente público). Ainda que falso – um pouquinho de idealismo não fere jamais os fins não-lucrativos do empreendimento – estes mediadores combatem por verbas das mais diversas frentes (públicas e privadas) sob a condição “justa” de, no interior deste jogo, ganhar uma parcela significativa da fatia. Neste negócio, naturalmente, conta-se com trabalho voluntário (natural baratear os seus “produtos” culturais) desde que a capacidade de gerenciamento das atividades não fiquem prejudicadas e os ganhos não-lucrativos sejam repartidos por ordem hierárquica do edital. As empresas, por sua vez, concedem os valores e direcionam o andamento do projeto. Travam assim um diálogo confortável entre seus fundos orçamentários e os (inter)mediadores. Claro, o “público-alvo” beneficiário jamais participa deste diálogo, incapazes que são de dominar o riquíssimo idioma, aparecendo apenas nos eventos comemorativos para mostrar o show do populacho. Daí que, sem a variante popular no processo, ONGs mediadoras e empresários podem incentivar projetos que lhes interessam ou mesmo fechar aqueles que lhes confiram prejuízos, seja ele monetário ou simbólico. Inúmeros são os exemplos de projetos sem fundamento, que giram em falso até que a roda da fortuna lhes sorria novamente. Estratégia de gerenciamento clássica dos tempos da Arte da Guerra, livro de bolso do universo empresarial.

 

Mas este é apenas um modo de encarar a coisa. No modo ONG, mais do que captadores de recursos, é preciso ser um “captador simbólico”. Afinal, verba não é suficiente para legitimar a autoridade alfandegária dos mediadores: que lhes concedam o poder para dizer que ações valem ou não. Não basta uma Coca-Cola chegar para ajudar; é preciso um exército para convencer que o projeto é legal, produtivo e, tanto melhor, a única solução possível. Para tanto, é preciso captar “valor simbólico” e concorrer com as alternativas já existentes neste território.

 

 

A marca que elas gostam

Valor simbólico não se consegue da noite pro dia, como num assalto a banco. É preciso artimanha. Característica do texto do Eleilson: enquanto coordenador cultural de uma ONG, vale o prestígio de estar perifericamente às voltas do centro. Primeiro, como já dito, não se pode nunca enfrentar o inimigo, mas dividi-lo. Com uma parte ganha, é preciso então levar os novos “aliados” para o seu terreno, propriamente. Daí a estranha defesa do Sarau do Binho, contra o Bar do Binho (ou a defesa do Binho contra ele mesmo). Diante da alternativa simbólica de um Sarau que ocorre num bar, espaço que parece avesso ao imaginário ongueiro (embora nas noites de samba, a Ação Educativa forneça aos convivas suas biritas) parte para o ataque contra a mistura (saudável) entre bebida, literatura e música. Aliás, nada mais comum no universo boêmio e transgressor das artes; ou os antigos poetas, que Eleilson tanto idolatra, seriam apenas funcionários públicos que em suas noites de folga fugiam para seus comportados lares, onde compunham odes de enfeitar salões?

Neste ataque ao Bar do Binho, a crônica que Eleilson cria tem destino certo: o poeta no bar é um animal em extinção. Por outro lado, os saraus em ONGs, bibliotecas e outros lugares reconhecidos oficialmente são o “novo paradigma”. Muitos deles frutos dos esforços da mediação, que bebe à rodo dos editais e vomita cidadania. Tudo o que lhe é alternativo, um bar inclusive, deve ser lacrado como espaço proibido da cultura. Ali não há possibilidade de controle, mas um caos que a Arte-Educação não consegue deter. Seriam como crianças no recreio, brincando de cultura. Nada sério e comportado como mandam os editais. Daí que atacar o bar em defesa do sarau do Binho revela mais do que esperamos: a luta pelo valor simbólico que aquele local conquistou, valor que escapa das malhas cidadãs sem fins lucrativos. Diante deste fato, Eleilson quer ser o cronista de uma pretensa morte anunciada, angariando assim um valor simbólico necessário para manter seu papel de mediador cultural. Algo que confunde os bem-intencionados e aproxima os mal-intencionados…

 

Moral da crônica…

Por isso, não se trata de um jogo meramente ganancioso. Trata-se de um modo de ver o mundo. Um modo de captar valor simbólico e continuar como parasita entre os extremos, como um bom (inter)mediador deve ser. Adquirir “valor simbólico” neste lugar significa poder espalhar para os quatro cantos sua versão da crônica, emplacar nos blogues ditos progressistas como porta-voz da quebrada, ainda que silencie os processos violentos (simbólicos e físicos) contrários à pluralidade das manifestações culturais. Mas, podemos nos perguntar como Binho em um verso seu que Eleilson se esforça por esquecer: “Até quando a corda irá arrebentar do lado mais preto?”

 Tudo se passa como se possível fosse o poeta sem espaço. Um poeta da periferia sem a periferia no poeta. Um poeta sem bar. Nada mais criminoso do que alguém mais tirano do que o tirano. Nada mais miserável do que o valor simbólico que esconde sua violência. O homem do terceiro setor torna-se então o testa de ferro de setores terceiros. Neste modo ONG de encarar a vida, a única moral é o cinismo.

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