Archive for julho 2012

O rebatismo simbólico da “Escola de Música do Estado Tom Jobim” para “Escola Livre de Música Pato N’Água”

“estou convicto de que um divisor de águas está separando, de forma crescente e indestrutível, a imaginação política democrática dos trabalhadores da empulhação sistemática dos que, até hoje, só defenderam a ditadura dissimulada ou aberta dos poderosos.”

Florestan Fernandes, A ditadura em questão

A repressão no Brasil possui diversas facetas, sendo uma das mais cruéis a alienação do patrimônio simbólico através da apropriação das tradições populares por uma elite que insiste em se dizer aliada das classes exploradas. Os grupos da elite brasileira, tanto no campo da direita como no da esquerda, sempre usufruíram deste legado e, para além disso, apoderaram-se e corromperam esta memória.

A história do samba, por exemplo, deixa de ser a história dos populares de origem negra e passa a ser a história do encontro dos negros e brancos no contexto carioca. A fábula antropológica de Hermano Vianna intitulada o Mistério do Samba, obra ícone entre os acadêmicos festivos, reduz a tradição do samba à um mitológico encontro entre Pixinguinha e Gilberto Freyre, que representaria em si a junção entre a cultura negra e a cultura modernista, representante de uma elite progressista brasileira. A fábula é tão bonita quanto falsa, mas isto pouco importa para grande parte de nossos “pensadores”,  ávidos por uma antropofagia que tem por modelo menos Macunaíma, e mais seu algoz, o gigante Venceslau Pietro Petra.

O samba nasce, se desenvolve e permanece uma tradição negra, descendente da síncopa africana (como bem explica Muniz Sodré em seu lapidar ensaio “Samba, o dono do corpo”) e tem continuidade nos terreiros, favelas e becos ocupados pelos nossos deserdados da terra. Os homens e mulheres brancos que participam da cultura samba são, na maioria das vezes, pessoas que foram rebaixadas à condição de pobreza reservada à parcela da população “de cor” (entenda-se nesta expressão racista os não brancos – negros, índios e mestiços) ou ainda uma parcela da elite que opta estética e politicamente pela cultura dos marginalizados. Não podemos confundir este extrato com os oportunistas de plantão, sempre ávidos por reproduzir a lógica da Casa Grande e Senzala, munidos das táticas e armas da indústria cultural (seja em seu modelo massificado, seja no modelo biscoito fino).

Assim como a cultura samba, a cultura de resistência e de luta contra a opressão foi simbolicamente extorquida das classes populares na reconstituição do período 1964-1984.

Jonas X Jonas

É sabido que o golpe civil-militar de 64 teve como alvo central nos seus primeiros anos as ligas camponesas, os sindicatos e os militares progressistas. Porém muitos historiadores insistem no mito de que a ditadura brava teria começado somente em 1968 com o Ato Institucional Número 5. Antes um grupo intermediário e moderado estaria no poder. Não se trata aqui de negar a substancial piora da repressão após 68. Mas de lembrar que se o AI-5 de uma forma geral representou o início da violência somente para parte dos extratos médios brasileiros politizados. Para a população pobre não foi um começo, mas um aprofundamento da brutal repressão que ocorria desde o dia Primeiro de abril de 64. O povo negro continuou e continua sofrendo as consequências do golpe militar cotidianamente. Muitas das técnicas de tortura implantadas na época ainda são comuns em nossas cadeias. Os massacres e execuções são, como sabemos, corriqueiros.

O livro Dos Filhos Deste Solo cita um total de 424 mortos políticos pelo regime militar. Parece pouco frente às 492 mortes por execução em São Paulo em Maio de 2006, consequência da reação facínora da polícia aos ataques do PCC. Mas por que não consideramos crime político nos anos 60-70 as ações do esquadrão da morte frente à população marginalizada e as políticas de “higienização” e de apoio à especulação imobiliária na cidade e no campo ao longo de toda a ditadura? Muitos milhares de mortos pelas forças de repressão não foram assassinados por suas ideias políticas, mas por sua existência indesejável frente à expansão do capital. Talvez este seja o legado mais duradouro do golpe de 1964 e o menos comentado.

O apito de Pato N´Água emudecido

 É neste contexto que lembramos a figura de Pato N’Água, diretor de bateria do cordão Vai Vai, executado pelo esquadrão da morte em 1969. O laudo pericial foi de infarto. Mas no enterro, sambistas amigos constataram a morte matada. Geraldo Filme compôs em sua homenagem um dos sambas mais bonitos de São Paulo, Silêncio no Bexiga, onde dizia: “partiu, não tem placa de bronze / Não fica na história / Sambista de rua morre sem glória / Depois de tanta alegria que ele nos deu / Assim, um fato repete de novo / Sambista de rua, artista do povo / E é mais um que foi sem dizer adeus…”.O fato repete de novo. E de novo. E sempre. Há muitos Patos N’águas morrendo cotidianamente pela lógica civil militar que insiste em não acabar. Pela idéia de ordem e limpeza (étnica, sobretudo), pelas práticas de eliminação física dos corpos que impedem o livre fluxo do capital e a explosão dos interesses imobiliários. Assim foi em Carajás, assim foi na Candelária, assim foi no Carandiru, assim foi em Corumbiara, assim é cotidianamente em São Paulo, de Pinheirinho à Cracolândia.

É dentro desta lógica que a revitalização do centro de São Paulo reaparece com a máscara da Nova Luz. A primeira medida governamental foi a eliminação violenta do comércio ambulante e dos prostíbulos e suas meninas. Depois veio a perseguição aos consumidores de crack, seguida da expulsão dos músicos da Rua do Samba, evento mensal que reunia cerca de 3 mil pessoas na rua General Osório (rua que é tradicionalmente um reduto do samba e do choro de São Paulo). Ao lado de onde acontecia o evento instalou-se a “Escola de Música do Estado Tom Jobim”, voltada não para o “samba”, mas para uma música de “nível”! O nome de Tom Jobim é apropriado neste contexto como signo da exclusão: na rua de choro e do samba paulista colocaremos uma escola que representa uma Cultura com “C maiúsculo”, parte integrante do elitizado corredor cultural formado pela Sala São Paulo, Pinacoteca, escola de dança do Estado (ainda em construção), Museu da Língua Portuguesa e, sintomaticamente, o “Museu da resistência” no antigo Deops. Como se a memória dos anos de chumbo não se fizesse presente em frente ao prédio, nas táticas militares de combate aos viciados, aos sambistas, ao comércio ambulante, às crianças pobres e às prostitutas da Boca do Lixo.

O que está presente na limpeza militarizada do centro de São Paulo são os espectros sinistros do delegado Sérgio Fleury, Wilson Richetti e Romeu Tuma. É a continuidade da lógica de massacres e humilhações e de apagamento da memória dos resistentes. Mais do que isso, a limpeza simbólica da cultura do samba na General Osório, mostra o sentido primeiro dos projetos de higienzação – a eugenização do centro.

Rebatismo simbólico para que um fato não se repita

Túmulo do Samba?

Neste contexto, o rebatismo simbólico da “Escola de Música do Estado Tom Jobim” para “Escola livre de Música Pato N’Água” tem um significado que vai muito além de uma opção musical. Significa resistir à ditadura simbólica da higienização/eugenização bossa nova ao som de um negro partido alto. Significa colorir de preto a claridade da nova luz. É tornar Jobim Antonio Carlos brasileiro. É fazer como fez Glauber no enterro de Di Cavalcanti e sacudir a poeira da institucionalização da obra do grande artista disfarçada em homenagem. E acima de tudo, rebatizar a escola é recuperar a alma do samba sempre presente na Boca do Lixo, valorizar a cultura daquele local, e levar para frente do Deops do delegado Fleury a imagem de uma de suas primeiras vítimas: o sambista Pato N’água. Os bossa-novistas que nos perdoem, mas memória é fundamental. Rebatizar simbolicamente aquilo que nos oprime não é um ato de violência contra os patrimônios culturais, mas é dar voz à imaginação política que encontra na vala de sua luta os milhares de Patos N´águas, morto pelo fato de existir como aquilo que sempre ofendeu as elites: negro, pobre, sambista e contestador.

O Coletivo Zagaia é um grupo de crítica e experimentação estética.

Cordão da Mentira: de onde? Para onde?

Em apenas uma semana, artigos em blogs, revistas e jornais procuraram decifrar o enigma de “carnavalizar a ditadura civil-militar”. Termo difícil de compreender, dada sua natureza contraditória, associando a carne em festa e a carne torturada. E, como toda contradição, seus labirintos conduziram a cobertura midiática à simplificação dos eventos, chegando raramente ao universo mais complexo, onde o ar é rarefeito e onde os processos se iniciaram. Pois é neste ponto onde está a novidade do Cordão da Mentira, onde a estética encontra a política.

 

A cobertura simples

Há duas maneiras simplórias de se encarar o cordão, dispensando seu processo artístico-político. Duas maneiras que precisam, portanto, ser rejeitadas se o caminho é radicalizar o debate.

A primeira delas procura partir de quem são os atores, quais suas opiniões e o que eles defendem. Exemplar aqui é o relato da Folha de São Paulo (FSP), que, antes mesmo de tudo acontecer, caracteriza o ato como “universitário”. Muito embora sabendo, através de entrevista com membros da organização do Cordão, que a composição do grupo seguia além do campus, Bernardo Franco – editor chefe do caderno “Poder” da FSP – decidiu por bem caracterizá-lo como uma atividade de universitários. Não se trata, pois, de desinformação, mas de mau jornalismo, para não irmos às “vias de fato”. Ora, tratar o Cordão da Mentira como tal tem implícita uma mensagem, que acompanha as páginas deste jornal sempre quando o assunto é “manifestação universitária”: gente jovem e contestadora, geralmente da classe média que pode estudar, que adora uma baderna e outra, ocupando espaços que não deveriam ser os seus, transgredindo a ordem sempre que possível. Nenhuma conduta que a patrulha do tempo não seja capaz de corrigir. Afinal, depois, já formados, estes mesmos jovens ironizariam seus feitos, como algo distante de suas experiências, como muitos ex-guerrilheiros caracterizam suas ações do passado… Trata-se, pois, de uma estratégia que procura reduzir o Cordão a uma classe social com prazo determinado para contestação, deixando de lado outras agremiações e coletivos que participaram do processo de criação estética do Cordão.

Samba universitário???

Na verdade, o motor do Cordão tinha como combustível não um “samba universitário”, mas, principalmente, a composição de sambistas integrantes de escolas e projetos de samba, batucados por meninos e meninas regidos pelas competentes mãos de Mestre Paulo. Eis o que se deixa de lado.

 Vejam, é gente da esquerda falando isso! (Não estamos discutindo, pois, a natureza política, considerando a Carta Capital e o autor anti-PIG´s viscerais). Entretanto, o limite não está em compreender um ato como mais ou menos simbólico do que outro, mas sim, em desconsiderar o Cordão como um todo, dissolvendo a proposta estética no interior de plataformas políticas. Erro clássico das estéticas de esquerda, pois o discurso político assume um vanguardismo às avessas, calando a dialética desta produção cultural própria à diversidade de manifestações populares, como a tradição dos cordões que procuramos recuperar.

No interior desta cegueira do sensível, a armadilha se dá em dois eixos. Um menos perigoso, porém não menos presente. Sua periculosidade é menor porque, desde a Escola de Frankfurt, a esquerda sempre desconfia dos processos criativos e suas apropriações simbólicas pela indústria cultural. Não é a toa que, durante o processo de elaboração do Cordão, fomos procurados por empreendimentos dos mais estranhos, que confundem a carnavalização da ditadura civil-militar com qualquer festa onde ninguém é de ninguém. São produtores culturais, além do bem e do mal, que procuram financiar os eventos, não importando a natureza deles. Procuram intermediar os grupos com as instituições públicas, “facilitando” a realização de seus eventos. Estranhas “OS´s (organizações sociais) culturais”, que administram a cultura como administram hospitais, prisões e escolas em nossa cidade.

Lembrando nossas alianças.

Contrariando esta conduta, optamos desde o início nos afastar de tais empreendimentos, relacionando-nos com outras frentes políticas, encontrando nas próprias pernas de aliados tradicionais, métodos críticos antigos e novos. Sem sindicatos como a Conlutas, não teríamos carro de som; sem o apoio de antigos militantes comprometidos com a crítica à ditadura, caminhos ficariam mais difíceis de trilhar; sem uma juventude anárquica e descrente nasestruturas partidárias, mas não menos comprometidas com projetos estético-políticos como os do Cordão, tudo isso seria impossível; sem diversos Saraus, posses de Hip-Hop e demais coletivos periféricos seria impossível realizar o “Sarau Luis Gama” na abertura do Cordão; sem o apoio dos movimentos de Samba e das Mães de Maio, enfim, não compreenderíamos que a ditadura civil-militar não se restringe ao período descrito nos livros de história, mas faz parte do processo chamado Brasil, desde sua tenra idade escravista até a modernidade bárbara de Pinheirinho e outras chacinas.

Um segundo perigo, este pior, é não fazer perguntas primordiais: afinal, como tudo isso que representa o Cordão da Mentira foi possível? Que tipos de processo alimentaram a relação de grupos tão diversos e, por vezes, divergentes? Questões que procuram deixar de lado quem é o quê, e procura entender de onde vêm os agentes do cordão.

 

De onde?

Inverter a lógica das narrativas anteriores talvez seja a melhor maneira de compreendermos um processo como o Cordão da Mentira. Expliquemo-nos. Seja a FSP, seja a Carta Capital, bem como em artigos e vídeos publicados em outros blogs de esquerda ou direita que assumiram posições similares às suas respectivas mídias impressas, ambas assumiram a perspectiva política para compreender a manifestação do cordão. Com isso, a arena política e suas velhas formas ficam evidenciadas, tratando o evento ora como um estereótipo da esquerda festiva, ora como um meio novo para propagar antigas críticas da esquerda. Raras exceções, é possível contar nos dedos de uma só mão as publicações que se voltaram para o ambiente estético criado pelo Cordão.

Ora, o ponto de partida que possibilitou o Cordão não é a política que se utiliza da estética para seus discursos, mas a estética que segue em direção à política, providenciando uma nova sensibilidade em um corpo que se manifesta durante um longo percurso, ao som de sambas e com intervenções teatrais, orientando-se por estandartes e reabrindo um mapa esquecido da nossa memória.

Mais ainda, o ambiente do Cordão é uma estética que providencia uma horizontalidade de protagonismos raras vezes vista. Todos os grupos que participaram do processo de criação puderam se sentir representados, na medida mesma em que a base do Cordão foi, em sua maioria, realizada no mesmo plano. Os músicos tocaram seus sambas, acompanhando o cortejo no chão. O sarau, que reuniu diversos poetas das periferias ou de outras gerações de combate, aconteceu no chão. Público e Obra, todos no mesmo nível. Exceção feita às intervenções teatrais ou celebrativas, que ocuparam o espaço que podiam, estando presentes nos desvãos das ruas, no carro de som (ironizando a estética dos palanques), nas placas fixadas nos muros ou mesmo em tradicionais sedes teatrais.

Estética contra a ditadura de ontem e de hoje
Estética contra a ditadura de ontem e de hoje

Em meio a tantos coletivos, há uma estética politizante que alimenta que sustenta as ações do Cordão, tal como encontramos em sambas nada irônicos (pois é, nem todos eles o são), mas bem francos em suas mensagens, como o “Frevo da Falha”, o “Camarada Lampião” e o “Novos Porcos”; ou em manifestações mais irônicas como a marchinha “Quem torturou o Zé?” e as intervenções da Cia. Kiwi (em frente à FSP), do Engenho Teatral (no vão da USP/Maria Antonia) e a “Ópera do Bom Burguês” do Estudo de Cena (em frente ao santuário da TFP); ou em celebrações mais solenes como as placas deixadas ao longo do trajeto. Todas estas vozes puderam ser ouvidas no interior da estética performática preparada pelo Cordão. Basta saber para onde estas vozes nos levam…

 

Para onde?

Para onde?
Para onde?

Uma destas estruturas, pouco ou nada comentada por qualquer mídia, foi o desvio planejado pelos membros do Cordão da Mentira em frente à antiga sede do DOPS. Ao invés de seguir o caminho natural e dispersar o cortejo carnavalesco diante do atual Memorial da Resistência, o cordão voltou-se para a sede da antiga Escola “Tom Jobim”, atualmente (para nós) Escola Livre de Música “Pato N’Água”. Nesta deriva, havia algo de contundente. Alguns perceberam e reclamaram. Outros sequer entenderam. Poucos (geralmente mais ligados com a história do samba) compreenderam claramente a mensagem. Pato N’Água não era um militante político. Sua consciência se alimentava da trajetória dos antigos cordões, sendo um dos principais líderes da Vai-Vai. Era, portanto, representante legítimo do samba enquanto cultura de encontros e desencontros. Sua morte, entretanto, foi política. Assassinado a tiros pelo esquadrão de morte do Dr. Fleury, não por ser contestador, mas por ser negro, sambista e pobre. É o encontro trágico da estética com a política. Encontro trágico que se repete, não como farsa, na morte de centenas de Patos N’Águas que habitam as periferias ou que circulam onde “não deveriam”. Portanto, Pato N’Água é uma “constelação”, uma destas estruturas simbólicas que é o encontro do passado com a ruína do presente. Constelação que hoje se faz presente quando os grupos dominantes não se contentam em exterminar seus dominados, mas calar toda manifestação cultural que lhes confira dignidade e reconhecimento.

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Este é apenas um sinal da força crítica que a estética do Cordão possibilita. Um desvio no tempo e no espaço através do conjunto de seus símbolos, expresso não através de discursos, mas pela música, poesia, imagens e alegorias diversas com alto potencial político. Enfim, o Cordão prepara uma luta simbólica contra a força da mentira que se reproduz não apenas no passado da ditadura civil-militar, mas na narrativa de um país que desconhece seu presente genocida. Uma luta de classes que opera no imaginário, sobre o qual também a esquerda precisa espantar fantasmas que rondam sua percepção e sua atitude.

Coletivo Zagaia, com colaboração de Danilo César e outros guerreiros